Em audiência pública no STF, Jorge Messias defende que é preciso distinguir evolução econômica legítima da dissimulação de vínculo empregatício.
Em audiência pública no Supremo Tribunal Federal (STF), o advogado-geral da União, Jorge Messias, afirmou que a pejotização coloca em risco os alicerces do pacto do trabalho digno e da seguridade social previstos na Constituição Federal de 1988. O ministro definiu o fenômeno como uma “cupinização” dos direitos trabalhistas, que “corrói por dentro, silenciosamente, as estruturas que sustentam a proteção social”. Para Messias, o País deve construir um modelo que “respeite a liberdade econômica, mas que também preserve o trabalho digno, a proteção previdenciária e a solidariedade entre as gerações”.
A chamada pejotização diz respeito à contratação de trabalhadores como pessoa jurídica para evitar o vínculo empregatício. A audiência pública, realizada nesta segunda-feira (6/10), foi convocada pelo ministro do STF Gilmar Mendes, no âmbito do Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 1532603, com repercussão geral sobre o tema.
O debate na Suprema Corte envolve três pontos: a competência da Justiça do Trabalho para julgar casos que envolvam alegação de fraude em contratos civis; a licitude da contratação de trabalhadores autônomos ou de pessoas jurídicas, à luz da liberdade de organização produtiva; e a distribuição do ônus da prova nas hipóteses em que se questiona a validade desses contratos.
Justiça do Trabalho
Para Messias, a competência da Justiça do Trabalho nos processos de pejotização é uma exigência da Constituição. “É nela que se revela, sob o manto das aparências contratuais, a verdade material das relações laborais. É nesta jurisdição que o princípio da primazia da realidade cumpre seu papel constitucional: o de impedir que o direito seja manipulado como instrumento de exclusão”, argumenta.
“Negá-la seria enfraquecer o sistema de proteção social que garante o equilíbrio entre capital e trabalho e, em última instância, negar a essência do próprio Estado democrático de Direito”, alerta Messias.
Escolha esclarecida
Outra questão abordada pelo advogado-geral da União foi a chamada “escolha esclarecida do trabalhador”, que seria suficiente para validar um contrato pejotizado. Para Messias, em muitos casos, a escolha reveste uma imposição. “Não se trata de escolha plenamente livre, mas necessidade de inserção profissional, tendo em vista o fato de que tal modelo atípico de relação de trabalho tem se tornado a regra”, defendeu o ministro da AGU.
“Não há liberdade real quando a única alternativa é abrir um CNPJ (Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica) para manter o sustento da família. Não há autonomia quando o mercado impõe a pejotização como condição para o emprego”, sintetiza Messias.
Base da pirâmide
O advogado-geral da União destacou que o fenômeno, antes concentrado em profissões especializadas, tem se expandido para faixas de menor renda. Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), apontam que 56% dos trabalhadores demitidos que se pejotizaram entre 2022 e 2024 recebem até R$ 2 mil mensais; outros 37%, até R$ 6 mil.
“Trata-se de categorias tradicionalmente celetistas, como garçons, vendedores, operadores de centros de distribuição, secretariado, construção civil e teleatendimento. Isso evidencia que já não estamos falando de uma opção de elites profissionais, mas de uma imposição silenciosa sobre a base da pirâmide social”, alerta Messias.
Seguridade Social
Como salientou o advogado-geral da União, a pejotização não impacta apenas o trabalhador contratado, mas todo o sistema de seguridade social. Messias informou que, entre 2022 e 2024, o fenômeno provocou um déficit estimado de R$ 60 bilhões na Previdência Social, além de perdas de R$ 24 bilhões ao Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS).
“É um problema de sustentabilidade estrutural do sistema, que afeta o trabalhador individual – quem sente primeiro a ausência de proteção –, mas também toda a coletividade, ao comprometer a base de financiamento do seguro social e aumentar a desigualdade”, sintetiza.
Certeza negativa
Em resumo, o advogado-geral da União argumenta que é “preciso distinguir, com precisão conceitual e sensibilidade social, o que representa evolução legítima das formas de organização econômica daquilo que dissimula vínculos empregatícios e desprotege o trabalhador”.
Nesse sentido, com base no princípio da certeza negativa, Messias elencou situações que não se enquadram na pejotização: relação de franquia, com autonomia empresarial real; sociedades de propósito específico (SPE); consultoria independente, sem subordinação jurídica; e prestação de serviços B2B.
“Ou seja, a pejotização não é empreendedorismo autêntico, nascido da autonomia e da livre iniciativa. Não é a liberdade de contratar entre iguais. Não é a modernização produtiva que gera eficiência e inovação”, explica o ministro.
Valorização do trabalho
Ao final do discurso, Messias afirmou que espera que o STF “reafirme que liberdade econômica não pode ser instrumento de erosão do pacto social de 1988, nem justificativa para o desmonte deliberado da rede de proteção previdenciária e de Seguridade Social”.
Nesse sentido, o ministro defende que seja construído um modelo que concilie inovação, eficiência produtiva e justiça social. “O Brasil precisa de um modelo de desenvolvimento que valorize o trabalho e garanta a segurança jurídica – mas, sob a égide do princípio da dignidade da pessoa humana, não a partir de uma lógica que, em nome da competitividade, transforme o trabalhador em prestador sem direitos e o cidadão em contribuinte de segunda linha, sem qualquer proteção”, resume.
Além dos ministros Jorge Messias e Gilmar Mendes, participaram da abertura da audiência pública o subprocurador-geral da República, Luiz Augusto Santos Lima, e o ministro do Trabalho, Luiz Marinho. Para o restante da audiência, estão previstas exposições de 48 especialistas sobre o tema.
Publicado em 06out25
Assessoria Especial de Comunicação Social da AGU
Categoria: Justiça e Segurança
